sábado, janeiro 03, 2009

Sombras à madrugada

A madrugada seguia por mim, enquanto a chuva caía torrencial e van alguma queria levar-me para a Central do Brasil. Deveria ter me preparado melhor, mas havia bem pouco que poderia fazer agora. E pelo jeito q todos os motoristas chegavam anunciando que não pretendiam voltar, o caminho de volta ao Rio deveria estar bem ruim, com tanta água. Sobre a plataforma, já éramos o suficiente para lotar duas viagens e mesmo assim nenhuma van de volta. Até, claro, a mais ferrada de todas surgir do nada, desembarcando uma lotação naquela rodoviária de interior e anunciando que voltaria.

Seguiria até o destino final, então sentei-me ao fundo, em um canto. Ao meu lado, curiosamente, um pastor evangélico negro trazia sua bíblia e me cumprimentava, antes de pegar o celular para avisar a alguém q finalmente havia conseguido condução de volta à capital. Em meio à conversa, um dado curioso: "Fui comprar os sapatos e vieram me chamando de pastor, daquele jeito, sabe? Quase perguntei se me preferiam de volta nas drogas e no crime." Ao nosso lado, sentou-se um senhor fedendo a álcool que não sabia indicar onde precisava saltar. Todos demorando a se acomodar, bem mais gente do que deveria caber, ali. Mas fomos.

Em meio à jornada, o pastor lia Pedro: Desejai afetuosamente, como meninos novamente nascidos, o leite racional, não falsificado, para que por ele vades crescendo; Se é que já provastes que o Senhor é benigno. A página terminava aí, junto com meu interesse, e fui dar conta de passar meu próprio tempo longe das palavras dos outros primogênitos e da igreja do Filho. Tenho uma predileção, ao jogar Sudoku, por cantar em voz baixa os números q procuro. O q causou uma reação curiosa do pastor, cada vez q eu procurava os seis, de três em três quadrados. "Meia, meia... meia."

Central do Brasil. A van mais lerda da história me deixara lá depois de 00h40 e encontrei o ponto do 184 vazio. O pastor havia seguido qualquer outro caminho. Quando cheguei à plataforma do meu ônibus, já havia um outro rapaz, 30 e poucos anos, talvez, e ficamos aguardando. 3 carros vieram e os 3 avisaram q já dirigiam-se à garagem, depois dali. 01h25 o homem pergunta-me "Quer rachar um táxi até o ponto final, em Laranjeiras?"; "Como sabe que vou pro ponto final?"; "E porquê não saberia? Mas a 3 quadras daqui passam o 497 e o 498, tbm." Eu sabia desses dois ônibus, mas não costumava caminhar até lá. Era em si um lugar bem ermo. Fomos.

Em meio à espera, dois homens, negros, vieram ao ponto. Um deles, mais baixo, enfurecido. O outro um homem mais alto, forte, carregando uma cesta de natal. O primeiro relatava de como lhe haviam roubado a mochila. "Não tinha nada de valor lá! Eu não tenho nada de valor! Só minhas roupas do trabalho, meus documentos, cara. Meus instrumentos. O q me define!" O homem que estava comigo começou a sorrir e me olhou de soslaio, antes de conversar com o revoltoso. "Levaram mesmo? Mas na mão grande assim?"; "Assim, cara. Porra, hoje quem me olha torto eu pego."; "Os justos pagarão pelos pecadores."; "Issaê! É bíblico, né? Mas é isso mermo! Quero porrar alguém hoje. Os justos pagarão pelos pecadores! Minha mochila, cara, porra!"

O homem ao meu lado instigava aquele mortal a falar cada vez mais. O rapaz gritava. Quando veio o 498, sentou-se, furioso, ficava dando socos na cadeira. Dizia q queria pegar um. E repetia o tempo todo "Os justos, cara... alguém vai pagar por esse pecador filho da puta." O ônibus estava mais sujo q a calçada. Terra virara lama, latinhas de cerveja, duas, rolando pelo chão. Várias pessoas lá dentro, o homem incomodando, o outro sentado atrás dele e eu e o rapaz da Central que me levara até ali sentados no fundo. Até que ele se pronunciou "Tá vendo? Isso é bíblico." e começou a rir.

Começou a conversar comigo sobre o quão insanas se tornam as madrugadas. Que mundo é esse, de ataques a esmo e um filho, porque todos supostamente somos filhos de Deus, honesto, trabalhador, sendo roubado de tudo o q tem. Uma mochila. Roubaram-lhe tudo o que tinha, que ele carregava às costas. Me fez a pergunta. "Quanta gente já perdeu igual, suas... mochilas?" Foi quando meus olhos se abriram, como minhas asas... percebi com quem eu falava. Toda a violência que se construía naquela cena, todas as palavras e até onde aquele homem me levara. Observei-o sorrir, quando o incômodo do passageiro se tornou demais e o trocador foi ter com ele. O ônibus parou, a briga havia estancado, as pessoas tentando separar. O assaltado berrava.

Pude ver aquele homem perdendo asas... Não as dele, mas aquela raiva era a de um caído. Aquele mortal provocava-se com a mágoa de um de nós. E ao meu lado, Beelzebuth sorria. "A madrugada de um trabalhador. Revoltado, incontido." Quando separaram tudo e o ônibus começou a andar, o trocador olhou para nós, lá no fundo, os únicos q nada fizeram em meio à confusão. A gravata rasgada e a cruz pendendo do pescoço.

Os dois saltamos perto do ponto final do 184 e caminhamos. Ele me falava, como me falaria há eras atrás: "Aquele cara tá certo, sabe? Tem horas q violência só se pode revidar. Violência gera violência, então pra quê ficar parado quando te provocam?"; "Existem momentos, sim..."; "Quer momento melhor que às duas da madruga?"; "Tem horas que parece q o demônio vem mostrar seu exército, orgulhoso."; "Do jeito q tá fácil pra ele, estranho seria se não fizesse."

Ao alcançarmos a esquina de minha rua, logo ao ponto final, ele falou "Valeu, cara, boa noite" e virou-se em um caminho totalmente oposto, voltando a descer a rua. Só respondi "Boa noite, Rei das Moscas", ao q ele sorriu, antes de ir-se.

Beelzebuth, general, mostrava-me suas garras.